Por Aline do Carmo / Foto : Stephane Munnier

Meu nome é Aline do Carmo, sou mulher negra brasileira e nasci em Campinas, no interior de São Paulo. Cresci na zona norte do Rio de Janeiro num bairro chamado Méier. Eu não sei afirmar ao certo quando comecei entender que eu era negra. Foi muito cedo. Porém esse valor, como valor social, tinha um peso diferente quando eu estava com minha família e quando eu encontrava o mundo exterior. Essa diferença se dava por conta do racismo. Fato que vim descobrir muito mais tarde. 

Racismo é racismo em todo lugar. Racismo é uma doença mundial. E assim como outras doenças a exemplo do machismo, da homofobia, se a doença não é extinta pela raiz, ela vai evoluindo. Ela penetra cada vez mais nas nossas estruturas e se torna cada vez mais sútil. Até o ponto que as pessoas contaminadas, começam a falar que isso é mito. E pior do que simplesmente falar, é a população acreditar. Esse imaginário do mito da democracia racial rodeia a mente das pessoas até que nós tenhamos provas, imagens ou vídeos que mostram o contrário, que a guerra nunca acabou. Que o sofrimento perdura. Nesse momento de dor, que se levanta o véu da ilusão, pessoas escolhem de qual lado estão. Não há desculpas. Ou a pessoa se posiciona contra ou a doença já tomou seu corpo inteiro. 

No momento que aconteceu o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, no dia 25 de maio de 2020, no Brasil e na França estávamos passando por um período de confinamento devido a pandemia causada pelo vírus COVID-19. A maioria da população estava enclausurada em suas casas, com os olhos vidrados na televisão, na internet e nas redes sociais pois precisávamos nos comunicar, nos socializar. Todos viram o vídeo. O mundo viu os quatro policiais (Derek Chauvin, J. Alexandre Kueng, Thomas Kiernan Lane e Tou Thao)1 assassinando Floyd. O mundo viu as pessoas ao redor questionando e pedindo para os policiais pararem. Os policiais continuaram ainda que Floyd falasse que não estava conseguindo respirar.  

No Brasil, dias antes do assassinato de George Floyd, no dia 18 de maio, a polícia também matou um menino de 14 anos, João Pedro Mattos Pinto2 baleado nas costas dentro da sua própria casa em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Não só, eles mataram também Kauê Ribeiro dos Santos (12 anos)3, Kauã Vitor da Silva (11 anos)4, Anna Carolina de Souza Neves (8 anos)5… O que essas crianças tinham em comum com George Floyd? A cor da pele: negra. 

Aqui na França, alguns pensam que polícia não é tão violenta assim. Eles se enganam. A morte de Floyd trouxe à tona também a investigação da morte do jovem Adama Traoré6, assassinado com 24 anos em 2016. Os autores também foram policiais. A cor de Adama também é negra. Sua irmã mais velha Assa Traoré, até hoje ainda pede justiça contra as violências policiais. Dias após o assassinato de Floyd, tivemos notícias de policiais utilizando a mesma técnica com jovens negros no subúrbio de Paris. 

Não precisamos mais explicar que o racismo mata, né? Infelizmente isso é um fato. Não precisamos dizer que o racismo mata não somente a vítima, mas também toda a sua família, seus entes queridos, seus próximos. Vai matando e dizimando uma comunidade. Vai matando e dizimando os negros. Uma necropolítica que nunca acabou, só mudou a vestimenta para que no momento oportuno mostre sua verdadeira face, a morte. 

Como o racismo está em todo lugar, no Brasil, na França, nos Estados Unidos, para vivermos neste mundo, precisamos entender que ele é estrutural e como ele atua. Precisamos urgentemente mudar essa leitura de mundo que tenta naturalizar certas atrocidades. 

« Não escute como bobo só ao que as pessoas falam com a boca » – Audre Lorde (Sister Outsider) 

No Brasil, a polícia mais letal é a polícia do Rio de Janeiro7, cidade onde eu fui criada. Lá, eu aprendi o que é ter medo da polícia, independentemente de onde você está. Uma pessoa negra no Brasil anda carregando um alvo nas costas. Não podemos correr na rua, não podemos comprar sem nos preocuparmos com a posição de nossas mãos, não podemos andar com guarda-chuva8, sem sermos confundidos com um criminoso. E fora isso, temos que lidar com os outros « nãos », limitações do mercado de trabalho, das oportunidades de estudo, de expressão estética. Na maioria das vezes, somos vistos como mercadoria ou como mercado consumidor, mas nos falta respeito. Não é raro escutarmos: « Apesar do seu currículo ser excelente, você não foi selecionado para a vaga ». O racismo mata, na corpo, na mente e na alma. 

Quando cheguei em Paris, me revoltei ao perceber o racismo no seu modus operandi. Sou casada com Stéphane Munnier (homem branco) e ao entrarmos num mercado próximo a torre Montparnasse, o alarme soou. Levei um susto, e olhei ao redor pra ver se tinha mais alguém entrando. Não. Éramos só nós dois, juntos, de mãos dadas. Nesse mesmo momento, o segurança se direcionou a mim, e pediu para que eu saísse novamente e retornasse por conta do alarme. Eu já tinha entendido o recado: « você é negra e seu marido não, deve ser você que soou o alarme ». Eu fiquei P da vida, saí e retornei. Nada aconteceu. Logo após, com toda delicadeza do mundo, « Senhor, você sabe como são as regras… Você poderia, por favor, sair da loja? só pra confirmar que não há nenhum problema »9. Meu marido saiu e quando ele entrou, o alarme tocou. Você quer saber o que o segurança fez? Nada! Mas como assim nada? Nada! A resposta dele foi: « ah ok deve ser um problema do aparelho » e nos deixou entrar para fazermos nossas compras. Isso aconteceu no meu primeiro mês aqui. Hoje tenho 2 anos e meio e infelizmente as histórias se acumulam. Nunca sabemos quando a violência vai acontecer.

Foto: Gabriella Silva / Afroafeto

Por conta desse avanço do racismo, enraizado nas sociedades, em vários setores, em vários partidos políticos (não importando se você é de direita ou é de esquerda), muitos militantes no Brasil, dentre os quais eu gostaria de citar minha mãe, Benedita Antonieta de Moraes, optaram pela educação. Educação dos seus e dos próximos. A educação como ferramenta de transformação social. 

« A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para transformar o mundo » – Nelson Mandela

Começar por transformar a visão do mundo, começar por entender a razão de nos quererem mortos. Compreender a sociedade em que estamos inseridos. Identificar quem lucra com a manutenção dessa situação. Entender que por mais que façamos, não seremos o « suficiente » simplesmente porque não querem. Parar de colocar expectativas de aceitação nos outros10. Entender que temos que construir nossas próprias estruturas e criarmos nossas próprias ferramentas para fazer de outra forma. Isso leva tempo, mas vale a pena. 

Em novembro de 2018, com a Denilza Lopes e o Stéphane Munnier, fundamos a associação Oyà – pela Arte e pela Cultura Afro Diaspórica justamente para contribuir na criação de novas ferramentas de transformação dessa visão de mundo, ainda que seja do lado de cá do oceano. Na associação somos comprometidos com o  movimento contra-hegemônico de educação popular antirracista e decolonial, que visa a emancipação dos participantes e que, aos poucos, irá nos levar para uma sociedade mais equilibrada. Nossa intenção não é uniformizar os seres, mas justamente valorizar as subjetividades nesse mundo com tantas diferenças de raças, religiões, partidos políticos, culturas, línguas etc. 

« Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não
produza, alimente ou reproduza as desigualdades » – Boa Ventura dos Santos

De uma forma global, desejamos que a alteridade seja vista, não como uma impossibilidade de coexistência, mas sim como uma força criativa e agregadora para construirmos novos rumos para uma sociedade que de fato preserve a vida. No Brasil, isso pode ser observado quando nos deparamos com reparações históricas que resultaram no sistema de cotas raciais nas universidades11, políticas de prevenção a violência doméstica etc. Na França (especificamente na França e não na Europa toda), por conta das leis, suprimiram a palavra raça da constituição. E como consequência não há o senso racial12 como é feito no Brasil. Isso faz com que as políticas afirmativas tenham outra « vestimenta », elas são feitas por regiões considerando outras desigualdades. Porém quando pessoas de bairros prioritários13, ou das regiões de educação prioritária, são beneficiadas sabemos ao mesmo tempo que cor elas têm. 

Com todo esse movimento migratório, do Brasil para a França, aprendi que temos de estar comprometidos com a nossa luta. Devemos buscar sempre a nossa atualização com notícias, entrevistas, livros, músicas… Devemos nos responsabilizar pelas referências que escolhemos, pois como disse anteriormente, a doença do racismo evolui. E nós (pretos, brancos, árabes, asiáticos, indígenas etc), pessoas engajadas na luta antirracista, temos que saber qual é a roupa do racismo quando ele se apresenta. Se autoconhecer, trazer esse movimento, esses saberes encarnados independentemente do lugar no qual você vive, são importantes para a nossa sobrevivência. Se agrupar, agir coletivamente, para ganharmos força. E sempre se questionar: Qual tipo de sociedade que eu quero deixar? E com os olhos bem atentos, seguir nesse rumo. 

Aline do Carmo.
Co-fundadora da Association Oyà.
Pesquisadora em educação e contextos internacionais.
e aluna do Ngoma Capoeira Angola.

  1. Notícia do jornal The New York Times publicada no dia 4 de junho de 2020. Officers Charged in George Floyd’s Death Not Likely to Present United Front
  2. Reportagem do jornal O Globo publicada no dia 19 de maio de 2020. Menino de 14 anos morre durante operação das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, RJ 
  3. Reportagem do jornal O Globo publicada no dia 09 de setembro de 2019. Menino de 12 anos morto durante operação da PM no Chapadão é enterrado 
  4. Reportagem do jornal Folha de São Paulo publicada no dia 25 de junho de 2020. Menino de 11 anos baleado na cabeça é a 5ª criança morta no Rio em 2020 
  5. Reportagem do jornal Folha de São Paulo publicada no dia 10 de janeiro de 2020. Menina de 8 anos é baleada, e RJ tem primeira criança morta pela violência em 2020 
  6. Reportagem do jornal Le Monde publicada dia 12 de junho de 2020. Adama Traoré : les zones d’ombre d’une affaire devenue un symbole 
  7. Reportagem na revista Piauí publicada no dia 26 de agosto de 2019. A polícia que mais mata
  8. Reportagem no site Catraca Livre no dia 18 de setembro de 2018. Acusado de confundir guarda-chuva com fuzil, PM mata homem no RJ  
  9. Grifo da autora « Monsieur, vous savez comme sont les règles. Vous pouvez, s’il vous plaît, sortir du magasin… juste pour confirmer qu’il n’y a pas des problèmes ? »
  10. Texto escrito por Mariame Damba. https://asso-oya.com/commemorationabolitionesclavage/
  11. Reflexão sobre a Lei de cotas raciais nas universidades tanto para discentes quanto docentes “O mundo se despedaça”, mas quem é de luta não abandona a linha de frente: reflexão sobre o processo de ampliação da política de cotas raciais
  12. Ver discurso do professor Pap Ndiaye : « Gommer le mot “race” de la Constitution française est un recul »
  13. Grifo da autora para quartiers prioritaires Région Île-de-France e Les Français portent un regard sombre sur les quartiers « sensibles