Alguns dias atrás a bomba estourou, quero dizer, UMA das bombas estourou. Foi publicado o caso de abuso sexual e pedofilia num dos maiores grupos de capoeira. Ver o artigo completo aqui. 

Muitos capoeiristas ficaram revoltados, alguns ficaram em cima do muro e outros ainda continuam negando. Mas aos que se revoltaram, o que vamos fazer para essas práticas pararem? Fora postagens em redes sociais e vídeos de repúdio, o que vamos fazer de concreto?
Na capoeira tem sempre duas velocidades: é fato que temos que combater a pedofilia, porém quando se trata de pessoas próximas, a galera fica mais calada. Estou na capoeira há 23 anos e sempre ouvi falar desse tipo de prática, sempre um boato, sempre um « parece que aquele mestre… »,  » me falaram que…, » mas nunca uma verdadeira denúncia como aquela de ontem.
Li outro dia um depoimento de uma moça sobre os abusos que ela sofreu no grupo ABADA, e reparei duas coisas interessantes no depoimento dela:
– « Eu estava na roda e o meu professor, do nada, veio falar para eu ir atrás porque o mestre queria falar comigo ».
– « Como não é comum um mestre falar com uma pessoa igual a mim (sem graduação) fiquei surpresa ».
Então, primeira coisa, podemos ver que tem conivência. Tem gente que fecha os olhos, que não quer saber, ou que tem muito interesse para que as coisas não sejam ditas. Tem que entender que quem vive de capoeira, precisa de seus alunos para viver. E quem não tem ética, quem não tem caráter, ou quem quer sucesso, não vai arriscar denunciar quem vai trazer grana e sucesso.
Segundo ponto, um mestre é, antes de tudo, um cidadão. Nada mais que isso. Com direito e deveres, e ainda mais com responsabilidades. Ele não é um guru ou um ídolo. No depoimento da moça, dá para entender que muitas vezes a figura do mestre é colocada num nível de idolatria além do normal. Além do saudável. Assim se criam relações de poder que na verdade não existem. E esses escrotos usam e abusam dessa relação com pessoas fracas ou ingênuas como crianças e jovens por exemplo. A relação com o mestre como pessoa deve ser de igual para igual. Temos que ensinar que Mestre é quem sabe mais, por ter experiência, por ter estudado mais; e não é um ídolo, quase um deus da capoeira, inalcançável. Essa relação vertical é muito nefasta.
Por ética, a relação que devemos ter entre mestr@s e alun@s deveria ser ensinada e se tornar um dos valores da capoeira, para termos uma relação amistosa, de confiança e de respeito de ambos lados.
Porque se essa relação é baseada numa admiração não saudável, exagerada, numa idolatria, é aí que pessoas mau intencionadas vão aproveitar para explorar esse culto a figura e veneração para fins pessoais. Vão construir uma estrutura relacional de grupo baseada no medo, no mérito, uma estrutura vertical de poder.
Isso se encontra no meio do cinema, da moda, das grandes escolas, nas igrejas, no esporte, nas empresas… e na capoeira. Sempre em estruturas verticais de poder.
Ensinar que a relação com o mestre é uma relação horizontal saudável, sem tirar o fato que mestre deve ser respeitado por sua experiência, seus estudos, sua vivência, pode talvez ajudar a evitar esse tipo de situação. Ajudar as pessoas entenderem que elas têm o direito de não aceitar e denunciar os atos de abuso, e não ter medo de se posicionar contra a injustiça quando são vítimas ou testemunhas do crime.
Assim saberemos que práticas de abuso não são coerentes com a cultura da capoeira e que outros capoeiristas, mestres e escolas poderão acolher, ouvir e apoiar denuncias se precisar.
« Ser oprimido significa a ausência de escolha » bell hooks.