A primeira vez que assisti ao documentário « JOGO DE CORPO. CAPOEIRA E ANCESTRALIDADE » do Mestre Cobra Mansa e o historiador Matthias Assunção, foi em Copacabana na casa de uma amiga, aluna do nosso grupo. Tinha nesse dia vários amigos de vários grupos da Zona Sul do Rio de Janeiro. Todos brancos. Importante contextualizar para o final da minha reflexão.

Depois do filme começamos a comentar e refletir sobre esse extraordinário e revelador documentário. E, porque eu não sei, me lembrei às vezes quando o meu mestre comentava nas aulas « solta o corpo, trabalha a expressão, a Capoeira é africana ». E me lembro dos sorrisos sarcástico da galera, pois não tem capoeira na África, a capoeira é brasileira. Pois é, esse dia, depois do documentário comecei a concordar com o meu mestre, que a capoeira é africana e comecei refletir sobre isso.

A resposta ao meu comentário foi unânime, radical: « Você não pode falar isso! A capoeira é mestiça, é pura cultura brasileira ». Caiu nesse exato momento um monte de críticas e respostas virulentas. A Capoeira não pode ser africana, ela é brasileira!

Fiquei muito tempo refletindo sobre isso. Não sobre a resposta, pois cada um tem o direito de pensar o que quiser, mas, sobre a reação quase violenta da resposta. Era o que? Defesa, agressividade, desespero?

Hoje acho que eu tenho a resposta. Então vamos lá… A Capoeira é Africana?

Quando o branco europeu decidiu comprar, prender, deportar, “exportar”, vender e escravizar o negro africano nas Américas e no mundo, ele abriu as fronteiras da África. Não a África física, geográfica mas a identidade e a cultura da África se espalhou. Diáspora.

Nós, europeus, brancos, euro-descendentes adoramos criar fronteiras. Cercar nossas terras, conquistar outras, “descobrir” terras novas e plantar uma bandeira. É o primeiro passo para definir nossas nações, culturas, identidades. Enquanto para outras civilizações o que define uma nação ou uma cultura é a sua ancestralidade, sua história, sua relação com a família, com a religião e o sagrado por exemplo. Na sua autobiografia Amadou Hampatê Bá começa assim: “Na África tradicional, o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é apenas um prolongamento.”

Difícil imaginar quando esses africanos escravizados se identificaram como brasileiros depois de tantas gerações de escravatura e colonização. Mas podemos muito bem imaginar que, apesar de todo esse sistema, por causa da suas próprias tradições e naturezas culturais, quando eles criaram o candomblé, o samba, o jongo,…a Capoeira, eles os criaram dentro de uma estrutura social africana, certamente desconstruída, transformada e reconstruída, pois adaptada a novas realidades. Uma sociedade africana, mesmo que seja em terra indígena brasileira colonizada pelo europeu.

Assim podemos admitir que sim, a capoeira é Africana.

Além disso, a Capoeira surgiu justamente como uma luta contra o Brasil. Contra um sistema opressor da população negra. A Capoeira é fundamentalmente não brasileira nesse sentido. Ela é o oposto.

Nós, Capoeiristas euro-descendentes, devemos refletir sobre a história e as origens da nossa arte. Vamos celebrar, homenagear e não nos apropriar dos valores, das grandezas e belezas dos verdadeiros detentores dessas glórias?

Mas então, o que era essa reação violenta e categórica « Você não pode falar isso! A capoeira é mestiça, é pura cultura brasileira », de um grupo de pessoas brancas com a incapacidade de imaginar ou refletir sobre a possibilidade que a capoeira seja africana? Medo de não poder mais justificar seu lugar de prática? Seu lugar de fonte de renda? Medo de descobrir que no fundo o branco participou pouco da criação da riqueza cultural no Brasil? Estou só me perguntando.

A Capoeira é para todos mas não é de todos.

Contra-Mestre Steph (Ngoma Paris).
Fotografo e designer,
Steph é aluno do Mestre Anastácio Marrom
do grupo Ngoma Capoeira Angola.